terça-feira, 1 de novembro de 2011

Spleen






“Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;

Quando se muda a terra em húmida enxovia
D'onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no tecto apodrecido;

Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D'uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em frebre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,

- Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorar e a carpir se arrastam pelo mundo;

Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh'alma sombria. A sucumbida Esp'rança,
Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!“


O poema acima, intitulado “Spleen”, faz parte da obra “As flores do mal” de Charles Baudelaire (que vemos abaixo), aqui, traduzido do original francês para o português por Delfim Guimarães.

O termo “spleen” – palavra inglesa para "baço" – se consagrou durante o século XIX para exprimir o sentimento de tédio sem causa, desesperança, ceticismo e melancolia, típicos da geração de poetas do chamado ultra-romantismo, ou mal du siècle. A conexão entre aquele órgão e estes sentimentos deriva da medicina grega antiga, que considerava cada órgão como sede de determinados humores.

No Brasil, um legítimo representante deste estilo foi Álvares de Azevedo:


“Minh'alma tenebrosa se entristece,
E muda como sala mortuária...
Deito-me só e triste, sem ter fome
Vejo na mesa a ceia solitária

Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo, Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo!”

(trecho do poema “Solidão”, da série Spleen e Charutos)

Segundo Ivan Junqueira, "o spleen é a expressão suprema do famoso "tédio baudelairiano", oposto à aspiração do poeta pelo absoluto e o infinito, cujo símbolo é o ideal"*. O poeta se posiciona como alguém que parece adivinhar no futuro o seu retorno a uma vida espiritual plena de que foi temporariamente apartado, sem conseguir fazer mais que desejá-la. Não deve ser por acaso que a geração seguinte - de poetas condoreiros - se caracterizará pela luta por causas sociais...

O Estudo n. 11 - da série de 12 Estudos escritos pelo brasileiro Francisco Mignone em 1970 - é um legítimo herdeiro das lúgubres gôndolas de Franz Liszt: uma barcarola densa, pessimista, de sonoridades escuras. Intitulado "Spleen", ele está posicionado justamente em meio a uma sequência de estudos que exploram a leveza e fluidez dos ritmos de dança do folclore brasileiro. É como se Mignone quisesse acrescentar à sua monumental obra um tom de drama, um elemento de inflexão formal que justifica e salienta o tom de epifania nas coisas simples que há em outros estudos, como o n. 9. (Em outro post comentamos sobre a relação entre os estudos "n. 4" de Mignone e Liszt.)

O Spleen de Mignone, que temos tocado entre os estudos n. 4 e n. 9, provocou muitos comentários entre os presentes ao nosso recital no Centro Cultural Pampulha, no dia 30/10/11; justamente um Centro onde é notável a vocação para a poesia cultivada por muitos de seus frequentadores e gestores. Ficamos intrigados com a coincidência, e imensamente felizes por conhecer e estimular pessoalmente poetas como a Márcia Araújo, que como nós têm encontrado na arte uma forma de superar noites pardacentas e angústias cruéis, numa caminhada em que o spleen se transfigurou em simples anseio por transcendência.

Na imagem no início do post vemos um retrato deste caminhante que chega a contemplar, do alto, as próprias nuvens (Der Wanderer über dem Nebelmeer, de Caspar David Friedrich - 1818).

1 comentários:

Márcia Araújo disse...

"...E em nossa mente em febre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões..."
Foi exatamente o que me aconteceu ao ouvir, sentir e degustar Ricardo extraindo do violão,histórias,sensações,emoções.
Adorei e recomendo!!!

Ricardo Marçal

Ricardo Marçal

O violonista belo-horizontino Ricardo Marçal (29) tem se dedicado a uma crescente agenda de concertos pelas mais diversas regiões do Brasil, cativando a simpatia do público e atraindo a atenção de meios de imprensa como os programas “Violões em Foco” e o tradicional “Música e Músicos do Brasil”, ambos da Rádio MEC-FM. É bacharel em Música pela UFMG na classe do professor Fernando Araújo, foi bolsista do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão por dois anos, prossegue seus estudos regulares como aluno particular do aclamado violonista Fábio Zanon e, a convite do maestro Oscar Ghiglia, tem se aperfeiçoado nos cursos anuais de verão da Accademia Musicale Chigiana de Siena, na Itália. Como solista tem se apresentado regularmente em importantes séries por Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e São Paulo. Seus projetos para 2012 incluem a 2a temporada do projeto "Elegia ao Violão", uma nova turnê com o quarteto de violões Corda Nova, do qual é membro fundador e uma turnê estadual com o Quarteto de Cordas da família Barros. Como pesquisador, Ricardo está elaborando um trabalho de pesquisa sobre o repertório de música de câmara com violão do início do séc. XIX em parceria com o historiador Gerson Castro e é professor dos cursos de história da música e apreciação musical da Academia de Ideias. Além disso, coordena a criação de uma série de música de câmara nos municípios mineiros de Betim, Brumadinho, Contagem, Crucilândia e Esmeraldas. (4/2012)

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